(Foto: Emílio Pedroso)
![]() |
POR : MOISÉS MENDES
Sacos de areia foram amontoados na semana passada na base das 14 comportas do muro da Avenida Mauá, que separa Porto Alegre do Rio Guaíba. Era parte do plano de prevenção contra a cheia.
Mas os sacos não
aguentaram a pressão da água. Porto Alegre virou a Veneza gaúcha dos desastres
climáticos, do egoísmo e da inépcia.
As comportas e os sacos estavam, em alguns trechos, a menos de 20 metros de armazéns do cais do porto da cidade. Os mesmos armazéns que acolheram, em março, o South Summit Brazil 2024.
Um mês antes das cheias
que atingem um terço do Estado e invadem a capital, Porto Alegre havia sido a
cidade mundial das ideias, da inovação, da tecnologia e do empreendedorismo.
É provável que nenhuma das soluções apresentadas por 3 mil startups tratasse de técnicas do uso de sacos de areia em situações parecidas. Os sacos se romperam, a cidade foi inundada por causa dessa e de muitas outras deficiências, e seus moradores se interrogam: o que falhou?
Por que Porto Alegre
consegue acolher o evento das soluções, geralmente virtuais, que irão gerir o
mundo no século 21, e não consegue enfrentar uma cheia analógica? E os dois
eventos, o Summit Brazil e a estrutura para evitar a invasão das águas, foram vizinhos
no mesmo espaço na beira do rio.
Porto
Alegre foi invadida pelas águas porque o muro e as comportas são dos anos 70
(uma das comportas estourou), a cidade sucateou seu sistema de drenagem e não
sabem mais nem mesmo usar sacos de areia para conter a água.
O Estado e o município, a
exemplo do que acontece no Brasil todo, privatizaram o que era bom e rentável,
ou sucatearam para vender depois, ficaram com o que consideram ruim ou pouco
lucrativo, desmantelaram estruturas e quadros de pessoal e acabaram por expor
seus servidores sobreviventes a constrangimentos.
Faltam
inteligências, no plural, para dar conta de coisas do cotidiano e de situações
excepcionais, como a catástrofe do clima que o homem provoca.
O professor Rualdo
Menegat, do Instituto de Geociências da UFRGS, sintetiza, em artigo
compartilhado por toda parte: além de vender tudo, “desmontaram também a
inteligência estratégica do Estado”.
Sumiram
as inteligências de Estado que pensavam a vida, a economia, o meio ambiente, as
cidades, a tecnologia, as questões sociais. O setor público desistiu, ao
transferir o que é seu ao setor privado, de refletir sobre o que precisa fazer
por prerrogativa e dever.
O privado passa também a
pensar pelo que deveria ser tarefa da área pública. Vale para o município, não
só nas questões consideradas estratégicas, mas cotidianas.
Augusto
Damiani, engenheiro hidrólogo, ex-diretor-geral do Dmae (o departamento de
águas e saneamento de Porto Alegre), servidor público aposentado, já sabia que
a água invadiria Porto Alegre.
Porque a prefeitura não
faz a manutenção das comportas. Porque a drenagem da cidade não funciona mais.
E porque, acreditem, aqueles pequenos sacos de plástico com areia, desses de
obras caseiras, colocados na base das comportas, não deveriam estar ali.
As comportas vazaram, os
bueiros estouraram e os sacos de areia se esfarelaram. No caso singelo dos
sacos, era preciso usar outro recipiente mais forte e outras misturas, com uso
até de cimento. Os sacos deveriam ser maiores, para segurar a água. E as frestas
das comportas deveriam ser vedadas com borrachas.
E assim se deu a combinação de grandes e pequenos
desastres materiais e humanos. O Rio Grande do Sul está sendo devastado pela
chuvarada que provoca mais danos em áreas mais degradadas. É tão óbvio.
Porque as pessoas das mais variadas áreas, as
empresas e a agricultura do agro pop e suas ganâncias tiveram a cumplicidade da
leniência dos que se elegeram para cuidar do setor público.
E por isso agora falta inteligência para pensar
soluções para o Estado e para as cidades. Não há inteligência porque, de forma
deliberada, o entreguismo só funciona se o Estado for descerebrado.
Damiani, que dirigiu também o Departamento de
Esgotos Pluviais (Dep) de Porto Alegre, estima que faltem hoje 2 mil servidores
no Dmae. A estrutura de pessoal de águas e saneamento tem um terço das
necessidades.
Damiani e Menegat são dois sábios das águas,
conhecem seus impactos em áreas rurais e urbanas maltratadas. Sabem por que os
bueiros das ruas de Porto Alegre estão explodindo com a cheia e por que os rios
se esparramam pelas cidades.
Ambos são inteligências desprezadas pelos
privatistas. A inteligência estratégica de que fala Menegat não tem mais nem a
companhia da inteligência prática, capaz de definir o melhor saco de areia para
conter uma cheia.
É um problema periférico e específico, que só
interessa aos gaúchos? Na visão egocêntrica de parte do Brasil, pode ser.
Principalmente para os que enxergam o Sul como uma coisa distante, com seus
dramas não resolvidos.
Mas o Rio Grande governado por Eduardo Leite (PSDB)
e a Porto Alegre gerida por Sebastião Melo (MDB) são o Brasil amanhã. Mesmo que
já tenham sido exemplos pelo que faziam bem feito.
Poucos lembram que o mesmo cais do Summit Brazil
foi, há duas décadas, o cais dos encontros do Fórum Social Mundial. O evento de
agora está preocupado em encontrar soluções que virem negócios, às vezes
imaginados por uma pessoa ou um pequeno grupo. Aquele evento do começo do
século 21 ambicionava as soluções coletivas.
Aparentemente, as inteligências dos dois eventos
poderiam se cruzar e se interligar, mas na essência enxergam mundos diferentes.
O muro da Mauá, que o entreguismo não conseguiu privatizar, é testemunha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário